A propriedade sobre os corpos das mulheres volta à pauta pública brasileira nesta semana, com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o aborto legal até 3 meses de gestação. A decisão do STF não descriminaliza nem legaliza a prática, mas abre precedentes para elevar a discussão sobre o tema. No entanto, a cada boa notícia, as tensões políticas se acirram. Um dia depois da decisão do STF, um requerimento com caráter de urgência foi protocolado pelo deputado federal e pastor evangélico João Campos, trazendo de volta à cena o projeto de lei (PL) 478/07, batizado como Estatuto do Nascituro.

:: STF entende que criminalização do aborto viola cinco direitos fundamentais das mulheres

O projeto, de autoria dos deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini, apresenta retrocesso à integralidade da saúde da mulher e suscitou uma série de mobilizações rechaçando a sua aprovação ao longo dos últimos anos. Em síntese, ele constitui vida social a um conjunto de células em detrimento dos direitos das mulheres, conquistados através da ação ininterrupta dos movimentos sociais.

Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em três casos: gravidez resultante de violência sexual, gestação de fetos anencéfalos ou em casos de riscos à vida da gestante. O Estatuto do Nascituro retroage nesse direito quando abre precedente, através de justificativas legais, para a punição de quem realiza o procedimento inclusive nesses casos. A proposta potencializa a ideia de propriedade sobre o corpo humano e impõe um conceito de “início da vida” que destitui o próprio direito à vida das mulheres.

Foto: Marcela Cornelli
Foto: Marcela Cornelli

O PL ainda vai mais longe. Ele busca propor uma política pública para que vítimas de estupro levem até o fim a gravidez resultante da violência, prevendo um subsídio, conhecido como ‘bolsa estupro’, que garantiria uma pensão até a maioridade da pessoa gestada. De acordo com seu o texto, “identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. Em caso de aprovação, o Estado brasileiro legitima o crime de estupro e dá ao agressor o status de pai.

Embora o texto não especifique, mulheres que tenham sofrido abortos espontâneos, cerca de 25% das gestações, podem ser culpadas pelo fato, pois o PL coíbe todo o tipo de interrupção da gravidez e dá margem para acusação e investigação. Basta lembrar de exemplos como os de El Salvador, país que aplica pena absoluta à prática, em que mulheres que sofreram abortos espontâneos foram condenadas e cumprem pena. É importante resgatar que a Organização das Nações Unidas (ONU) já recomendou ao Brasil reformas na legislação sobre o aborto, preocupada com o alto índice de mortalidade materna devido à prática clandestina.

O PL também vai de encontro à Lei de Biossegurança e às decisões do STF ao incluir no conceito de nascituro “os seres humanos concebidos ainda que ‘in vitro’, mesmo antes da transferência para o útero”. Em 2008, o STF decidiu que a pesquisa com células-tronco embrionárias não viola o direito à vida e ainda permite estudos que garantam o direito à saúde.

De um lado, a pressão fundamentalista exige que o Estado responda a uma visão de mundo determinada, calcada na posse do corpo e que mantém as relações de poder internas desses grupos. No entanto, não havendo um entendimento científico sobre o início da vida, o Estado deve respeitar o direito à saúde e a escolha das mulheres. As tensões se acirram e é preciso manter aquecida a luta contra o Estatuto do Nascituro. Ao aprová-lo, o Estado brasileiro reforça seu caráter misógino, reduzindo direitos básicos. A defesa do Estado laico e dos direitos das mulheres é imprescindível para a garantia dos direitos humanos em toda a sua universalidade.

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