Primeiramente: #FORATEMER!!!

Dedico este texto às Mulheres.

Sim, às Mulheres, pois o ano de 2015 foi um dos anos mais simbólicos às pautas de gênero e feminismos. Nós fomos as principais protagonistas dos movimentos que se insurgiram contra a opressão. Vimos Meninas Estudantes enfrentando tropas nos Colégios de São Paulo. Vimos Companheiras nossas tendo seus corpos agredidos, torturados, mutilados e violados, pela brutalidade do machismo. Vimos uma Presidenta legitimamente eleita sendo deposta por um golpe, que, dentre tantos adjetivos, o principal foi: misógino. Com tudo que vivenciamos ficou e temos como presente que nenhum passo à diante será dado sem que nós estejamos juntas.

A revolução será feminista ou não será!

Local de fala como meio de aproximação: quem sou?
Mulher, Feminista, Militante de Direitos Humanos. Professora de Direitos Humanos e Prática Jurídica do Cesusc; Mestre em Direito pela UFSC, na área da Criminologia Crítica, tendo pesquisado o “Controle penal atuarial e prisão cautelar, sob a orientação da Profa. Vera Regina Pereira de Andrade, firmando um diálogo sobre a teoria e a prática das políticas criminais contemporâneas e as políticas de segurança pública, mais detidamente no Brasil.

Além, sou Advogada há mais de uma década, dentro de um campo pouco conhecido na academia, que é a Advocacia Popular, sendo atualmente articuladora da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e compondo os Coletivos de Gênero Marietta Baderna, Catarina de Advocacia Popular e, mais recentemente, a Frente de Juristas Pela Democracia em SC.

Falar sobre a Advocacia Popular iria demandar um capítulo à parte, mas importa aqui destacar, que as Advogadas e Advogados Populares, são aqueles profissionais que atuam junto aos Movimentos Sociais, exemplos MST, MTST, MAB, Movimentos Feministas, Movimentos Indígenas, Movimentos Quilombolas, Movimentos Ambientais, com especial carinho menciono o MPL, espaço onde há alguns anos contribuímos com as lutas, e mais recentemente o Contrataque, Ocupa MinC e a Rede Fora Temer.

A atuação do campo jurídico, por sua vez, é algo mais amplo que a mera defesa em processos. Exige, além da compreensão do que são Movimentos Sociais, suas pautas, agendas e contributo em estratégias que somem às lutas pelas realizações de direitos. Voltarei a este assunto na sequência.

Faço sempre esta localização do meu local de fala, para situar o meu interlocutor de onde partem as minhas análises, que, no caso, são uma mescla entre teoria, empiria e prática.

E, para melhor propor este diálogo, estabeleci algumas perguntas centrais sobre o tema e a partir delas construindo uma narrativa que parte das ruas ao campo jurídico penal.

O que dizem as ruas?
Primeiro movimento que precisamos fazer é nos perguntarmos: o que gritam as ruas? Penso, que não podemos estabelecer um diálogo sem que antes a gente se pergunte quais as pautas, agendas e pleitos que permeiam as manifestações populares.

Em uma breve consulta à minha (às vezes falha) memória, vem à cabeça: a defesa do Estado Democrático de Direito, a defesa da Constituição, o direito à Cidade, o direito à mobilidade, o direito ao próprio corpo, o direito de existir, a cultura da não violência, o direito à saúde pública, o direito à educação pública e de qualidade, o direito à moradia, o direito à demarcação de terras, a declaração da função social da propriedade, o direito à justa remuneração pela sua força de trabalho, o direito ao meio ambiente, dentre tantos outros.

Pergunto a vocês: qual o amparo legal de todos (ou quase todos) os direitos que listei brevemente acima?

Alguns lembrarão e dirão: a CONSTITUIÇÃO!

Sim, é ela que diz tudo isso.

Da mesma forma, é ela que tantas e tantos buscam a realização de seus direitos e de suas garantias e é a rua que dá visibilidade a tudo isso, ou seja, as pessoas, os movimentos sociais, populares, organizados, desorganizados, sindicatos, classe trabalhadora, sempre se utilizaram dos espaços públicos como seus espaços de lutas, uma vez que nem sempre o campo da institucionalidade tem a capacidade ou interesse de ouvir as críticas ou as demandas a eles direcionadas.

Para esses embates que buscam de intervenção e mudança da estrutura social, as ruas são, muitas vezes, o local de maior liberdade e, nessa ótica, Boaventura de Sousa Santos afirma que:

Um País, ao limitar drasticamente os direitos econômicos e sociais dos cidadãos, aceita o sequestro da democracia pelo capital financeiro internacional, enquanto os cidadãos, atônitos entre a irrelevância de seus direitos políticos, sob as instituições democráticas, descobre nas ruas das cidades o único espaço público ainda não colonizado pelos mercados. Aí exercem esses direitos à beira do desespero e desprovidos de formulação política alternativa.

O que são os Movimentos Sociais?
Bom, não vou me ater aqui ao detalhamento teórico acerca dos movimentos sociais, que existe e é um debate extremamente valioso, com teóricos e acadêmicos importantíssimos, mas sim, trazer uma breve definição a partir de Eva Maria Lakatos[1], que os movimentos sociais derivam das insatisfações e das contradições existentes na ordem política, social, econômica ou cultural estabelecidas, isto é, têm início a partir de grupos sociais e apresentam certo grau de organização e de continuidade. Ressalta-se que esta organização não se traduz necessariamente em organização jurídica.

Denota-se ainda, que esta forma de organização de parcelas da população em torno de uma agenda ou uma pauta estão presentes em todas as sociedades, vinculados a um determinado contexto histórico, organizados e unidos por aspirações concretas, orientadas para uma mudança do status quo, devem ser considerados como fenômenos essenciais aos processos de mudança das sociedades, dadas a partir do conflito social, especialmente nos períodos de desequilíbrios do desenvolvimento democrático.

Ainda, importa dizer que os movimentos sociais são uma arena crucial para a compreensão de como esses entrelaçamentos, talvez precário, mas vital, do cultural e do político ocorrem na prática.

A ênfase na luta implica considerar que a força da resistência está no encontro entre opressores e oprimidos. Desse modo, cada sociedade ou estrutura social teria como cenário um contexto histórico no qual, estaria posto um conflito entre classes, a depender dos modelos culturais, políticos e sociais.

Desta forma, tomando como pressuposto a condição política nacional da atualidade, temos dois movimentos de extrema complexidade, mas que mostram evidentemente a luta de classes e a luta contra a opressão do modo de produção capitalista e da globalização (neo)liberal.

Qual o contexto das cidades (urbano)
Analisando o contexto atual e especificamente urbano, o que vemos são Cidades extremamente contraditórias, no qual o projeto dado a partir da Constituição de 1988, nunca foi construído, efetivado ou implementado.

Ou seja, vimos nascer um projeto de Brasil legalmente inclusivo, protetor, garantidor, mas nunca vimos as folhas ou colhemos seus frutos de maneira igualitária.

O projeto de sistema capitalista neoliberal global, iniciado no Brasil 2 anos após a promulgação da Constituição de 1988, não quis e sequer tentou realizar as promessas ali estabelecidas.

Diante disso, num processo crescente do racismo ambiental, que passou a operar com muita força nos grandes centros urbanos, vimos aumentar a segmentação entre concentração de riqueza e espoliados, além, claro, do processo de mercantilização dos bens e serviços essenciais.

Não vimos, por sua vez, a implementação de planos essenciais ao desenvolvimento social democrático, como o Plano Diretor, o Plano de Mobilidade, Reforma Urbana, respeito ao meio ambiente, ao saneamento, ao desenvolvimento metropolitano, que leva, sem dúvida alguma, ao acirramento das relações entre poder público e as Cidadãs e Cidadãos atingidos pelas suas ausências.

Enquanto isso, a classe mais abastada e economicamente privilegiada passa imune a qualquer impacto que a não assistência do Estado possa causar.

Consolidamos, assim, o que David Harvey denomina como ‘gentrificação’, onde os espaços urbanos ou a aparente substituição de paisagens de caráter popular por construções típicas de áreas nobres, sobretudo em função da valorização acentuada e do enobrecimento de uma área antes considerada periférica. Transformando o Cidadão naquele sujeito que pode pagar pela sua permanência nela.

Quem é o principal oponente?
Por certo o principal oponente é o Estado e a construção dos processos democráticos da administração pública, responsáveis pela efetivação de direitos e garantias essenciais à vida em sociedade.

Então, que Estado é esse e a quem representa?
Como já dito, este Estado é o que pode ser classificado como: estado-capitalista-neoliberal-global-machista-poluente, o ente que representa o interesse do capital e de seus investidores.

Não é, dentro do contexto atual, aquele que irá se comprometer com a efetivação das políticas públicas que incluam todas as Cidadãs e todos os Cidadãos, independente de classe, raça, gênero, opção sexual, religião, dentre outras tantas pluralidades.

Não se enganem!

E qual a função do Sistema de Justiça Criminal neste contexto?
É aí, justamente às enganadas e aos enganados, que estes mecanismos de controle social formais entram em cena! São eles: Polícias e Segurança Pública, Ministério Público e Poder Judiciário.

E o que vemos historicamente, e hoje está ainda mais evidente, são os filtros da seletividade que estas institucionalidades têm operado, demonstrando finalidades e interesses concretos, e, para tanto, faz-se o uso de seus mecanismos como medida de contenção, sejam de movimentos ou partido político.

Esses mecanismos e aparatos repressivos, seja pelo discurso da legalidade ou pelo uso da força, têm servido de justificativa à criminalização dos campos de lutas, utilizando-se, principalmente, o discurso de lei e ordem.

Há de se demarcar que ordem pública, por sua vez, é um conceito vago e impreciso, fruto da legislação autoritária do período entre guerras, e é subterfúgio para o julgamento mais conservador dos atores do direito, que visualizam como crime estas novas demandas sociais que se apresentam no regime Democrático.

Entender que a ação coletiva de ocupação das ruas, praças, pontes coloca em risco a ordem pública e que, portanto, se pode indiscriminadamente atacar com o aparato bélico “menos letal”, ou segregar cautelarmente seus mlitantes, como é o caso do flagrante forjado de um Cidadão na manifestação de 06 de setembro, é entender que na Democracia não cabe o conflito e negar a existência de problemas sociais históricos que o capitalismo não conseguiu e sequer pretendeu resolver.

Para Marilena Chauí[2] aqueles que se vinculam à tradição liberal da Democracia vêm como “o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”, o que redunda na nesta tentativa de conter os conflitos sociais. Esquecem, segundo ela que “democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito”. A Democracia é “a única forma da política que considera o conflito legítimo”.

Ainda, a paz não é a simples ausência de guerra. Uma cidade na qual a paz depende da inércia dos súditos deve mais corretamente ser chamada de solidão que de cidade.

O reconhecimento por parte do Poder Judiciário de que o conflito não é inerente ao regime Democrático, não é isolado, infelizmente. Estamos resgatando muitos entulhos autoritários ainda vigentes em nossa legislação, ou construindo novas leis autoritárias (caso da Lei Antiterrorismo), como o objetivo de criminalizar as ações dos movimentos sociais, maculando, assim, o apoio de muitos setores da sociedade civil e de autoridades da República, o que é muito grave.

Por fim, e não menos importante, quem está perdendo?
Aqui levanto alguns apontamentos à reflexão, sem aprofundá-los:

  1. Estamos diante de um processo concreto de criminalização dos Movimentos Sociais e de seus militantes;
  2. Estão sendo operadas, via de regra, a partir de Ações nos Juizados Especiais;
  3. Entendo, por oportuno, o juizado especial criminal como a maior falácia, ante a justificativa do “menor potencial ofensivo”, pois é justamente pela transação ou pela conciliação, que estamos vivenciando a maior e mais assustadora expansão do controle social, pela via da justiça penal;
  4. Perdemos a capacidade do diálogo com os atores nos quais são responsáveis pelas nossas pautas e agendas. Hoje a única institucionalidade de enfrentamento com os protestos e manifestações são as polícias militares, que em grande medida se colocam como “atores” (que não são!) de mediações. Contudo, e importa muito destacar, A POLÍCIA MILITAR NÃO É ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, ou detém o poder/dever conciliatório que pleiteiam as vozes das ruas. Querem que, no mínimo, as autoridades competentes desçam dos seus castelos e venham propor diálogo. Evitando, assim, que os manifestantes se acorrentem no SETUF pra ter uma planilha que deveria, pela Lei de Acesso à Informação, ser pública (MPL, 2012).
  5. Enfim, vejo claramente que vivemos um Estado de Polícia, onde o Ministério Público e o Poder Judiciário são igualmente responsáveis.

Concluo dizendo: estamos sim vivendo um Estado de Exceção (cf. Agambem).

[1] Cf. LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. São Paulo, Atlas, 1985.

[2] CHAUÍ, Marilena. Chauí defende veia conflituosa da democracia. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 ago. 2006. Ilustrada, Caderno E-4. 50 Ibid. 51 Ibid. contraponto legal para a luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra é a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

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  • Daniela Felix

    Mulher, feminista, comunista e militante de Direitos Humanos. Mestre em Direito PPGD/UFSC. Advogada Popular. Articulador...

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