• Ainda me lembro de um governador de Minas que, diante de professoras grevistas lá em meados dos anos 80, se defendeu das reivindicações públicas que estavam sendo feitas alegando o seguinte: “Elas não são mal pagas, mas mal casadas”.

(Os pressupostos vergonhosos: o trabalho de educar não merecia pagamento digno porque era realizado principalmente por mulheres; o trabalho preferencial de mulheres seria servir ao venerável marido e depender apenas dele; para aquelas que tinham seguido rumo diferente, um salário aviltante seria uma punição bastante clara diante daquela desprezível incompetência feminina, aquela nem tão discreta forma de subversão.

Sim!: desprezo pela educação e misoginia já andavam juntos.)

  • Tenho visto que o atual governo está muito especialmente empenhado em combater a “incompetência” dos professores, suas “regalias” e seus “privilégios”, e inclusive já estabeleceu que pra dar aulas no Ensino Médio não será preciso mais uma formação tão especializada, bastará ter “notório saber”.

(E afinal as mulheres ainda são 84% dos docentes da escola básica, e pelo visto as “tias” ainda não são exatamente profissionais que deveriam ser reconhecidas ou respeitadas; eis que perigamos voltar ao reino dos velhos improvisos, das eventuais “protegidas”, das subalternas sempre acuadas, da invisibilização e do rebaixamento de certos trabalhos fundamentais que no entanto, e de novo, estão sendo tidos como menos “produtivos”,“objetivos” etc.)

  • A “incompetência da escola pública” alardeada em revistas que divulgam largamente dados adulterados sobre o ranking das escolas no ENEM; escolas públicas bem sucedidas convenientemente “esquecidas” da tal lista; “o que é ruim a gente esconde, o que é bom a gente fatura” – e vice versa.

(Enquanto isso, os consultores escolhidos pra pensar a educação são representantes de grandes banqueiros, empresários milionários, velhíssimos burocratas sem qualquer sinal de giz nas mãos, eventualmente um ator pornô. Viva a face pedagógica da cultura do estupro na era de sua reprodutibilidade técnica.)

  • “Escola sem partido”: como talvez no tempo em que ninguém esclarecia que o glorioso Egito dos faraós ficava na África; em que a gente só ouvia falar de escravidão no Brasil pra aplaudir a princesa Isabel; em que bandeirantes assassinos eram apresentados como heróis; como no tempo em que genocídios eram apresentados como o triunfo da República contra o bárbaro “atraso” de sertanejos famintos; como no tempo em que o golpe militar de 1964 ainda nem era assunto de livro escolar, ou então era apresentados brevemente como “Revolução”.

(Lembrar que acima de tudo não se pode falar que é golpe, já que “tudo se passou dentro da mais perfeita legalidade”; também nunca houve capitanias hereditárias entre nós; não existem classes nem muito menos luta de classes; a escola deve ser “neutra” e se concentrar em ensinar “conteúdos”;  essa casca seca de tudo deverá daqui por diante nos bastar.)

  • “Falta empenho dos professores das escolas públicas”.

(E, no entanto, ainda me lembro que, quando botei o pé na estrada como professora, dei muitas aulas na “mais noturna das escolas noturnas” e lutava pra me manter acordada e pra manter minhas alunas e meus alunos igualmente acordados – durante o dia eram empregadas domésticas sem carteira assinada, donas de casa com filhos, lavadores de carro, ajudantes e entregadores de qualquer coisa. E, até pra minha surpresa, por vezes ficávamos completamente acesos, lendo, discutindo, escrevendo. Fazíamos manifestos, poemas, cartas de amor, petições públicas. Trocávamos receitas de comida, praticávamos mil e uma devorações. E eu seguia ainda que com contratos muito precários, pressão pra falsificar diários de classe, muitas horas de aulas não pagas, “vai reclamar com o bispo”. E me lembro de várias colegas de trabalho se reunindo voluntariamente em grupos de estudos, levando sempre trabalhos pra corrigir em casa, fazendo planejamento de aulas madrugadas adentro, dando muitas aulas particulares pra fechar um orçamento cronicamente inviável.)

  • “Professores deveriam ganhar apenas pelas horas efetivamente trabalhadas”.

(Regime de horista na quase totalidade das escolas e universidades particulares; a sistemática falsificação dos dados sobre regime de trabalho diante MEC; as mil horas de atividades extraclasse  por conta de “vestir a camisa”, mostrar “parceria” e “alinhamento ideológico”; o massacre de todas as horas não dormidas e das cordas vocais se deteriorando; a depressão e o esgotamento de tantas e tantos de nós por precisarmos seguir fazendo cada vez pior o que, no entanto, de fato ainda nos importa tanto. Ou por exemplo o “Sistema Fábrica”: produção sob demanda de conteúdos cronometrados e desencarnados, sem qualquer rosto humano que responda por nenhuma palavra dita, tudo pairando como que numa nuvem tóxica acima ou em volta de nós. Sufoco, sufoco. Olhos ardendo eternamente.)

  • “Quem não tem dinheiro não faz universidade”.

(E, no entanto, ainda me lembro que cheguei a dar aulas por mais de uma década pra centenas ou milhares de alunas e alunos que foram a primeira pessoa de suas famílias a entrar na universidade ou na pós-graduação. A garra deles, e tenacidade, as conquistas muito concretas, a crescente coragem pra falar em público,  o ser desejante desabrochando a olhos vistos. Cidadãs e cidadãos. O diploma, enfim, como algo bem maior do que só uma velha distinção social: uma nova carta de alforria, um passaporte social, um impetuoso lance de dados.  Aquela chance, enfim, ainda me lembro: como uma sorte na vida. E agora essas muitas bombas de “efeito moral” sobre as professoras e os professores que ainda protestam em praça pública. Saber também assim que representamos um perigo ou uma ameaça pra essa gente tenebrosa: ao menos esta honra. Saber por que estamos apanhando, mesmo que eles nem sempre saibam por que estão batendo. Escolas públicas ocupadas, com adolescentes resistindo à destruição do que podermos ser e nos dando lição, os mais belos frutos. Gente professando o que é preciso, mesmo – ou especialmente – quando nos falta o chão ou o ar. Os melhores mestres que, de repente, aprendem. As lições do dia; os nossos maiores deveres de casa; ainda e sempre sempre sempre: o porvir.)

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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