Atraso, sujeira e indecência tornaram-se sinônimos na Florianópolis de 1960. Para alcançar o progresso e as modernidades que outras capitais já experimentavam, as elites políticas promoveram uma verdadeira intervenção de Estado, antes mesmo do golpe civil-militar, marcada por um processo de higienização que limpou as ruas: não era mais tolerável a presença de pedintes, “desocupados” e prostitutas. Nesse contexto de exclusão, sob a visão de mundo da classe burguesa, nasce em 1963 a Vila Palmira, em Barreiros, município de São José (SC), onde as prostitutas foram forçadas a viver por cerca de 20 anos. Palmira, que deu nome ao lugar, era uma mulher católica, casada com o proprietário do loteamento, Célio Veiga, que após a morte da mulher resolveu homenageá-la dando o nome dela ao local – sem saber que se transformaria no bairro da prostituição.

No próximo 8 de julho, Boêmia se apresenta no Teatro do SESC Prainha, em Florianópolis/Foto: Chris Mayer

“Médicos e autoridades, disfarçadas pela repressão da igreja e dos moralistas da sociedade, sentiram a necessidade de tirar do espaço público a imagem ‘decadente’ das prostitutas, que eram tidas como ‘imorais e sujas’”, explica Maryana Cunha Ferrari (2008) em sua dissertação de mestrado para o programa de pós-graduação em História da UFSC, “Vila Palmira: prostituição e memória na grande Florianópolis nas décadas de 1960 a 1980”.

Essa “sujeira” é levantada dos tapetes da memória pelo espetáculo musical “Boêmia”, que tem no repertório compositoras mulheres, e na performance teatral uma crítica aos estatutos controversos da época, que até hoje, 60 anos depois, sustentam o discurso de controle do corpo feminino.

A última apresentação no Teatro Álvaro de Carvalho contou com a participação da cantora Eloísa Gonzaga/Foto: Chris Mayer

“O corpo feminino sempre foi objetificado. Não temos consideradas nossas vontades, desejos e muito menos somos chamadas a decidir sobre nossos próprios corpos. No entanto, é justamente essa objetificação que torna nosso corpo político e potencialmente mais perigoso; sendo um corpo que pretendem fixo e instrumentalizável, que serve de moeda e barganha, onde perpassam todos os desejos e vontades que nos subjuga, quando empoderado de si é altamente perigoso à ordem e à manutenção do status quo”, afirma a intérprete Jana Gularte, estudante de Ciências Sociais da UFSC.

Jana concedeu entrevista exclusiva ao Catarinas acerca do espetáculo que traz as protagonistas da noite da Grande Florianópolis das décadas de 1960 a 1980: as mulheres “externamente odiadas e internamente solicitadas”, que mesmo isoladas estão presentes nas representações de todas as famílias deste período, como observou Maryana em seu trabalho acadêmico. Dirigido pela cantora e compositora Tatiana Cobbett, Boêmia é integrado pelas atrizes Luz Aimée e Addia Furtado, pela violonista Natália Livramento e o percussionista Ubrother.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: Por que resgatar a história da Vila Palmira? O que ela suscita em termos de debate político?
Jana: Resgatar a Vila Palmira foi proposital para ilustrar o retrocesso em todas as esferas de políticas públicas que temos vivido, principalmente no que tange a políticas públicas para as mulheres. A Vila Palmira, para quem desconhece este período da história de Florianópolis, que compreendeu o fim da década de 1960 ao início da de 1980, foi um terreno adquirido pela prefeitura da capital. Afastado da cidade (que hoje corresponde a uma região de Capoeiras, conhecida popularmente como “Rua do pau do meio”) a prefeitura jogou lá todas as casas de boemia e prostituição que existiam nos arredores do Mercado Público. Como dizemos em um dos textos do espetáculo, o “Estatuto da Vila Palmira”, o intuito era “limpar”, “higienizar” a cidade, que mesmo sendo capital, ainda era considerada provinciana frente às outras capitais do país.

Durante mais de vinte anos, o poder público controlou, vigiou e também, segundo algumas investigações acadêmicas, explorou a prostituição na Vila Palmira, punindo de maneira cruel – própria do período ditatorial – as meninas que não “andassem na linha”, fosse essa linha uma estranha moral imposta ou mesmo o não faturamento necessário à paga da propina ao poder público. A comparação com este controle sobre as mulheres da época nos traz, em uma linha sinuosa, a pretensão do estado em continuar controlando nossos corpos, como no caso da PEC 181 – a PEC do aborto – que também citamos no espetáculo.

Isto sem falar no estado policialesco, punitivo e nada democrático que se acentua cada vez mais e de maneira mais incisiva em nossa vida cotidiana. A Vila Palmira serve como paralelo com o presente sim, mas também representa uma alegoria de um controle do poder público sobre os corpos e os espaços marginalizados que sempre existiu nas favelas, por exemplo. Obviamente, quando esta violência se espraia para o asfalto é que passamos a enxergá-la com mais clareza. Seria mais cômodo fazer um espetáculo falando de mulheridade a partir da nossa realidade fatual: mulheres brancas (na maioria do elenco) de classe média em um palco de teatro e espaços centrais. Mas o exercício do Boêmia é justamente borrar estas fronteiras entre o próprio e o impróprio não só na arte, mas no comportamento e na consideração que diferentes tipos de mulheres merecem.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: De que forma Boêmia relaciona passado, presente e futuro em relação à crítica ao conservadorismo?
No Boêmia assumimos o tempo como um paradigma passível de subversão, para que, justamente, possamos misturar os acontecimentos e mostrar que eles diferem de conteúdo nos tempos que estão situados, mas não na forma. Quero dizer com isso que fica mais fácil, misturando o tempo dentro de um mesmo espaço físico, perceber que as relações de poder, as hierarquias e o patriarcado estão presentes em todos os tempos, mesmo que de diferentes formas. O conservadorismo não é o mesmo de cinquenta anos atrás, e nem mesmo os mecanismos que procuram nos adequar ao status quo agem exatamente da mesma forma que no passado. Entretanto, nos sentimos igualmente coagidas, igualmente violentadas e igualmente empurradas a cabermos onde não queremos. Para que mudemos o futuro é que bagunçamos presente e passado e os colocamos dentro do nosso “quadrado de concreto suspenso no tempo e no espaço”, como sempre digo no início de cada espetáculo.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: O debate sobre a instrumentalização política do corpo das mulheres está colocado em Boêmia. Que reflexões são propostas a partir desse tema?
O corpo feminino sempre foi objetificado. Não temos consideradas nossas vontades, desejos e muito menos somos chamadas a decidir sobre nossos próprios corpos. No entanto, é justamente essa objetificação que torna nosso corpo político e potencialmente mais perigoso; sendo um corpo que pretendem fixo e instrumentalizável, que serve de moeda e barganha, onde perpassam todos os desejos e vontades que nos subjuga, quando empoderado de si é altamente perigoso à ordem e à manutenção do status quo. Negando nossa humanidade e aceitando nossa alienação, passamos a ser o espelho invertido da imagem do homem; o Boêmia convida que estes reflexos tomem vida, saiam do espelho e ganhem o mundo, transformando a ordem patriarcal vigente e tomando para nós a responsabilidade da instituição de um grande, amplo e afetuoso matriarcado.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: Como o repertório foi escolhido e de que forma se busca estabelecer conexão com o público através dele?
O repertório foi o mote inicial do espetáculo, porque a música é a linguagem que domino e é o meio que transito, e por isso, tenho mais propriedade para reclamar certas pautas; mas o espetáculo se transformou em algo maior que um show de música quase que por conta própria. A emergência dos temas a serem abordados não nos permitiu ficarmos apenas na seara da música. Mesmo assim, as músicas têm letras bastante representativas não apenas das realidades femininas, mas das visões de mundo dessas mulheres sobre muitos temas. A escolha do repertório também foi pautada pela importância de certas compositoras na história da música brasileira, além de suas letras e melodias. Cátia de França, mulher paraibana com uma trajetória incrível na música autoral, foi uma escolha unânime, assim como Joyce e Fátima Guedes, ambas cariocas, que embora façam parte do grande centro fonográfico nacional e sejam compositoras de uma qualidade inconteste, são invisibilizadas se comparadas com seus correspondentes contemporâneos do gênero masculino. São mulheres que estão aí, na luta árdua de viver de música autoral, e que por isso mesmo, tem muito a nos dizer. Tentamos escolher canções e textos que não pintassem apenas a mulher ideal, a mártir, a heroína; buscamos contemplar mulheres reais, com toda a complexidade que significa ser mulher, ou como gosto de dizer no espetáculo, “sermos várias mulheres dentro de uma”. Acho que fica muito claro no repertório que podemos ser frágeis, confusas e perdidas tanto quanto podemos ser fortes, decididas e autossuficientes; a questão fundamental é que todas, sem exceção, merecemos respeito e dignidade.

Catarinas: O espetáculo vai além da apresentação musical. Há um cuidado com o figurino, cenografia e performance. O que essas linguagens agregam em termos de representação e formato?
Sim, tivemos esta preocupação, e recorri à direção da Tatiana Cobbett – mestre nesse tipo de espetáculo que mistura música e cênica – justamente porque queria um espetáculo mais holístico; apenas as canções, embora representativas do universo autoral feminino no Brasil, não eram suficientes para dar conta de tudo o que queríamos falar. O cenário ser o interior de uma boate na Vila Palmira exige os figurinos e a atitude cênica, que precisava fazer uma cama para a música onde pudéssemos contar não uma, mas muitas histórias de diversas mulheres. Embora a linguagem musical seja de um alcance inconteste, queríamos envolver o público e abraçá-lo com o ambiente, fazer com que as pessoas se sentissem não expectadoras apenas, mas parte do contexto do espetáculo, e, acima de tudo, se reconhecessem nas histórias e entendessem que entre uma prostituta e uma dona de casa existem muito mais violências, preconceitos e dramas a serem compartilhados que se possa imaginar. Claro, em diferentes graus e intensidades, mas quando nos reconhecemos na outra, fica mais fácil a empatia. Para falar de mulheridade marginal, precisamos estar atentas às que, mais que nós, são vulneráveis, e por isso foi necessário anunciar antes da música ou da fala o espaço de onde parte esta discussão: este espaço proibido, imoral e naturalmente marginalizado; assim se fez não apenas pertinente, mas fundamental todas as linguagens que cercam o Boêmia.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: Como Boêmia tem sido recebido pelo público?
Claro que seria mais fácil eu falar aqui dos inúmeros elogios e críticas positivas, mas não posso ser hipócrita: Boêmia é um espetáculo de afronta não só a valores tradicionais como também a valores que mesmo as pessoas mais progressistas não gostam de mexer. Todo mundo tem dentro de si, em diferentes níveis, porções de conservadorismo, muitas naturalizadas e cristalizadas. Outras vezes, mesmo quando racionalizamos nossas posições e nos consideramos abertos, entrar em um espetáculo e dar de cara com situações inusitadas como um teatro transformado em cabaré, onde uma atriz se insinua e toca no público, mexe com estas questões de maneira diferente, porque desloca a experiência. Sinto também muito presente a questão da gordofobia como difícil de disfarçar por parte do público. Tenho um corpo fora dos padrões normativos, sou uma mulher de formas generosas, e espero o público de espartilho, saia de renda curta e pernas abertas. É perceptível o desconforto de muitas pessoas, mas acho que se mexeu com a cabeça e com as certezas de alguns, cumprimos nosso papel. Já completamos sete espetáculos com este do TAC, e desde o primeiro, que foi em dezembro de 2017 na Casa Vermelha, sempre tem alguém que levanta e vai embora antes do meio do espetáculo, já virou praxe. Mesmo assim, entendo e acho que isto já faz parte da proposta: balançar as estruturas não apenas sociais, mas principalmente, proporcionar uma experiência interna transformadora e a partir daí, travar um diálogo franco e aberto sobre tantos temas jogados no limbo da imoralidade e do tabu.

Fotos: Chris Mayer

Catarinas: Vocês encontraram resistências por tratarem de um tema tão tabu quanto a prostituição?
Por incrível que pareça, isto não é algo verbalizado para nós pelas pessoas que viram o Boêmia. É algo sempre tratado de forma alegórica pelo público e pelas mídias que temos acesso, porque as pessoas sabem que a prostituição é a paisagem do Boêmia, mas não é nosso verdadeiro ofício. Acho que por mais chocante que seja a concepção do espetáculo, ele não é, exatamente, a vida real. Não é também uma emulação da realidade, de forma alguma. Gosto de enxergar a arte como uma ponte entre o que somos e o que podemos ser ou entre o que aceitamos e o que repelimos: um desvio do fluxo normal da vida cotidiana que nos permite vestir diferentes realidades, mas não necessariamente, ser parte delas. Ao mesmo tempo, possibilita performances que tem o poder de abordar certos assuntos tabus de maneira mais poética, mais subjetiva e eu diria, quiçá, mais natural, porque a percepção ocorre mais através dos sentidos estéticos e não pela verbalização direta. Um espetáculo não é uma palestra, e talvez linguagens diferentes e performances comuniquem de forma mais eficaz o que, muitas vezes, se perde em tergiversações em meio às palavras.

Foto: Chris Mayer

 

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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