E se você pudesse fazer o seu melhor bolo de milho em troca de aprender algo que gosta muito, como tocar violão? Este ciclo cooperativo, sem dinheiro, juros, dívidas, burocracia e exploração é a base do Banco de Tempo, uma iniciativa que permite a troca de habilidades – ou talentos – por horas. O sistema que desvia a lógica financeirizada das relações já existe em diversos países há algumas décadas e funciona também em muitas cidades brasileiras, como Florianópolis.

As primeiras experiências de banco de tempo teriam surgido na Itália há vinte anos e em Portugal há quinze. No Brasil, o sistema existe há menos de uma década em cidades do sul do país, como Garopaba (SC), Curitiba (PR) e Rio Grande (RS).  O Banco de Tempo Florianópolis (BTF), criado há menos de dois anos, tem cerca de 1700 pessoas cadastradas e outras 15 mil no grupo virtual mantido no Facebook.

Os serviços oferecidos são os mais diversos e divididos em quinze categorias, como alimentos, transporte, turismo e projetos. O número de horas cobradas por cada um deles pode variar e a negociação é liberada, mas todos os talentos são valorados da mesma forma.

“Tempo não é dinheiro, é vida. E como a vida de todo mundo é igualmente valiosa, uma hora de consulta médica é igual a uma hora de serviço de pintura”, explica Thaís Maschio, uma das idealizadoras da plataforma que funciona pelo Facebook.

A troca de produtos também é permitida desde que os itens sejam produzidos pelos próprios/as associados/as.

A ideia do BTF nasceu dentro de um coletivo chamado Zeitgeist. O grupo levava o nome do filme, uma trilogia disponível em diferentes plataformas de vídeo na internet e que convoca os expectadores para mudanças culturais e adoção de padrões sustentáveis. Na prática, o grupo planejava ações para problemas sociais contemporâneos. “A gente tava pensando sobre o que fazer de real e prático, que tivesse impacto verdadeiro na sociedade”, conta Geovana Madeira Narcizo, uma das idealizadoras do BTF.

Foi após o parto da filha, há dois anos, que ela encontrou tempo e energia para estruturar o Banco de Tempo. “Tive o privilégio de uma gravidez tranquila e de poder ficar em casa cuidando da minha filha.  Nesta fase, pude dedicar um pouco da minha energia criadora pra fazer o BTF funcionar”, conta a “banqueira”, que começou a cursar Ciências Ambientais e Artes Plásticas, mas preferiu seguir seu próprio caminho de aprendizado, sem diploma. Assim como ela, Thaís também se divide entre a maternidade e as tarefas administrativas do Banco de Tempo, com planos de cursar Biologia assim que os filhos crescerem.

Geovana Madeira Narciso é uma das idealizadoras do BTF | Foto: Margareth McQuade

As mulheres são mais da metade das pessoas cadastradas no BTF. Muitas delas fazem parte do expressivo contingente que vê, no que o sistema tradicional chama de “trabalho informal”, a possibilidade de conciliar a rotina materna. No Banco de Tempo, encontram serviços que facilitam a sua vida e protagonizam diversas ações.

“É muito lindo de ver como o número de mulheres se sobrepõe em qualquer ação do Banco de Tempo”, conta Geovana.

Menos dinheiro, mais tempo

Associados do BTF colaboram com a bioconstrução do estúdio da Rádio Campeche | Foto: Margareth McQuade

Desde que começou a usar o BTF, Paula Veiga já vendeu doces, ofereceu massagens e vagas em oficina de mandalas pelo banco de tempo. Em troca, ganhou corte de cabelo, um sofá e até consulta veterinária para o gato Gogh. “Pude usufruir de serviços que eu nem cogitava porque não poderia incluí-los no meu orçamento mensal. Pelo banco, a gente consegue explorar tudo o que sabe fazer e o tempo acaba virando dinheiro de verdade”, conta.

Quem cuidou do gato Gogh foi Ellusa Assunção. Adepta das iniciativas economicamente solidárias, a veterinária holística já tinha ouvido falar sobre o Banco de Tempo de Portugal quando viu surgir o BTF. “Sempre tive essa pegada de prestar trabalhos sociais e já fazia trocas diretas no consultório”, lembra. Desde então, separa pelo menos duas consultas semanais na sua agenda para trocas pelo banco. Com seus créditos, fez terapia Thetahealing com Bárbara Ferreira, que participa do Banco há quatro meses. Historiadora, Bárbara vê no BTF a oportunidade do encontro de pessoas com este interesse comum.

“Sinto que o banco de tempo é mesmo uma ferramenta de trocas mais justa. Se a sociedade em geral fosse assim a gente viveria num sistema mais equilibrado econômica e energeticamente. Grandes profissionais que estão em busca dessa mudança de paradigmas econômicos estão cadastrados lá”, afirma.

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Seja pelo Banco de Tempo ou na clínica onde trabalha, a clientela de Ellusa recebe o mesmo tratamento, assegura a veterinária. “Sempre procuro um profissional com referências. A gente tem que prestar o serviço para o qual é qualificado”, diz a médica, que tem planos de ampliar a lista de talentos oferecidos. É que a experiência de permuta sem valor financeiro ajudou a impulsionar o sonho de promover um projeto social. Ellusa faz formação em yoga e, assim que concluir os estudos, planeja oferecer aulas gratuitas da prática na comunidade da Caeira da Barra do Sul, onde mora, com vagas reservadas para usuárias/os do BTF.

Ação anticapitalista

A lista de talentos disponíveis tem menos a ver com uma formação profissional específica do que com a aptidão: quem não gosta de cortar grama pode convocar outra pessoa mais disposta a esta tarefa e, em vez disso, preparar sopas para “vender” pelo mesmo valor, sempre pago em horas. “O capitalismo faz com que as pessoas praticamente virem a sua profissão e que seus  talentos só tenham valor na medida em que tragam retorno financeiro”, afirma Geovana. Ela argumenta também que a redescoberta de habilidades é um dos primeiros questionamentos provocados na vida de quem participa do Banco de Tempo.  “Quando a pessoa se cadastra no BTF, muitas vezes não sabe o que oferecer. Então, passa a se questionar e lembrar de coisas que gostava de fazer lá na infância, que é quando a gente entra em contato com muitos dos nossos talentos pela primeira vez”.

Festival dos Bens Comuns alimentou cerca de cem pessoas, em dois dias, com comidas preparadas com xepa de feiras | Foto: Margareth MCQuade

Em lugar da competição profissional, regra reverenciada pelo modelo capitalista, a cooperação acontece, transformando a forma como as pessoas se relacionam, conta Paula Veiga que também integra o BTF. “Muita gente oferece o que eu ofereço lá e não existe uma competição, mas um clima muito amistoso, de valorizar o potencial criativo do outro e a disponibilidade. Tudo é feito com muita entrega e muito amor e você acaba dando muito mais valor pras coisas”, conta.

“No banco, a gente encontra pessoas com cabeça pra mudança.  A partir do momento que você aceita participar de um movimento assim, aflora alguma coisa em você. A gente não consegue pagar um aluguel com ele, mas consegue melhorar a qualidade de vida e explorar potencial”, explica.

Projetos sociais

As trocas de talentos também alimentam projetos sociais e artísticos propostos e promovidos por associadas/os do Banco de Tempo. Reformas de espaços comunitários, festivais artísticos, cursos de idiomas, terapias e diversas outras ações se dedicam a resolver problemas comuns e prover espaços de convivência e cultura. Em vez de apenas delegar as responsabilidades para o poder público, a proposta é resolver o que está ao alcance da comunidade.

Funciona assim: as “transações” geram créditos para o próprio BTF e este “caixa de tempo” acumulado pelo banco é que patrocina as ações.  “Se um professor der uma aula de uma hora pra dez alunos, ele vai ganhar só uma hora e estas outras que foram arrecadadas voltam para o caixa de projetos sociais. Do ponto de vista capitalista, não faz sentido nenhum, mas do ponto de vista comunitário este professor tem a possibilidade de dar uma aula particular e receber esta mesma hora. É opcional ninguém é obrigado. Mas aí existe a possibilidade de, com esta hora da vida do professor, beneficiar dez pessoas e fomentar o caixa de projetos sociais”, explica Geovana Narciso.

Apresentação teatral realizada por alunas/os do curso de teatro promovido pelo BTF, no Dia do/a Trabalhador/a, no bairro Monte Cristo | Foto: Rafael Venuto

Menos competição, mais abundância

As práticas de economia colaborativa não são nenhuma novidade. Ao contrário, eram a base da economia nas antigas civilizações. “A troca de dádivas existe há algumas gerações mesmo dentro do sistema capitalista”, assegura Thaís.

Ao romper com o sistema tradicional financeirizado, estas iniciativas propõem a substituição do chamado paradigma da escassez por uma lógica de abundância.

O paradigma da escassez, explica Geovana, que rege o sistema capitalista, parte do pressuposto que os recursos disponíveis são limitados e insuficientes para todas as pessoas, o que leva a um ritmo de trabalho acelerado para dar conta do alto nível de consumo. “Neste sistema, não precisa saber se a sua roupa está sendo fabricada por um escravo, não interessa se o leite tá vindo de uma vaca escravizada 24 horas por dia. A frase do capitalismo é ‘eu tô pagando’. É isso que justifica uma pessoa ter três jatos, cinco iates e outras milhares de pessoas morrerem de fome. De fato, o planeta não tem capacidade pra alimentar esse desejo de consumo voraz”, afirma Geovana Narciso.

Já o paradigma da abundância contrapõe o conceito da escassez aplicada aos recursos. “O paradigma da abundância é uma troca de chave de como você enxerga o mundo. A comida nasce do chão e está disponível. Outra grande parte dela vem sendo desperdiçada, sendo jogada no lixo. Então, temos recursos ‘a rodo’ que não estão sendo utilizados. Não é que os recursos sejam escassos, o sistema é que precisa escoar pouco pra que ele funcione”, assegura Geovana, que tem os olhos brilhantes quando fala sobre como iniciativas coletivas podem mudar o mundo. “A gente vai conseguir ter um futuro ‘sustentável’, no sentido de se sustentar ecologicamente e como comunidade, se nos apoiarmos como grupo. Pensando no mundo e no outro, tendo essa empatia generalizada pelo planeta Terra e pelas pessoas”, acredita.

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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