Uma plateia calorosa acomodada nos jardins do palácio Cruz e Sousa recebeu a banda As Bahias e a Cozinha Mineira no fim deste domingo, 9 de outubro. O trio formado pelo guitarrista Rafael Acerbi e pelas vocalistas Raquel Virgínia e Assucena Assucena encerrou a programação da Feira Flamboiã. O show na versão acústica foi o primeiro de uma sequência promovida pelo circuito SESC Brasil afora. É a segunda “primeira vez” da banda em Florianópolis: As Bahias e a Cozinha Mineira também abriu a sua própria temporada de shows do ano na capital catarinense.

Ex-estudantes de História da USP, Raquel, Assucena e Rafael se encontraram em 2011, trazendo suas próprias influências musicais para a formação da banda. “As Bahias” é uma alusão ao apelido comum de Assucena e Raquel: a primeira nasceu no estado nordestino e a segunda viveu em Salvador. “A cozinha mineira” marca a base instrumental da banda original, composta por bateria, percussão e baixo – a dita “cozinha” da música; e também a origem de Rafael, natural de Poço de Caldas (MG).

Antes do espetáculo, a banda conversou com o Portal Catarinas sobre criação musical, visibilidade trans e feminismo.

img_0371
Rafael e Assucena | Foto: Priscila Lopes

CATARINAS – Como a música chegou na história pessoal de vocês?

RAFAEL ACERBI – Tenho uma família musical tanto por parte de pai quanto por parte de mãe. Meu avô estudou violino desde menino. Desde criança fui criado rodeado por música e instrumentos. Estudei piano, fui passando de instrumento para instrumento até parar na guitarra. Tive várias bandas no interior de Minas, gravei alguns álbuns, e através do rock tocava bateria e outros instrumentos. Quando A Cozinha Mineira se encontrou, é que fui assumir e estudar mais a guitarra.

ASSUCENA ASSUCENA – Eu sempre cantei e tive um ouvido muito musical. Minha irmã também cantava. Uma das primeiras lembranças é da gente cantando aos cinco anos. Foi muito natural. Crescemos ao pé da vitrola. Rolava muita música popular do sertão popular da Bahia, como Edigar Mão Branca, Elomar Figueira Mello, Xangai e também canções judaicas. Mais tarde, veio os americanismos, as cantoras americanas, principalmente a Whitney Houston. Saía cantando o tema do filme “O Guarda-Costas” pela casa (risos). Aos nove anos fui convidada pra ser solista no coral de um curso de idiomas da minha cidade. Fui solista por uns cinco anos, fiz o curso de inglês mas ia lá praticamente pra cantar (risos). Depois cheguei a cantar na igreja com a minha irmã. A igreja é um ambiente pra desenvolvimento vocal, seja católica, protestante… A relação entre a religiosidade e arte é muito próxima.

RAQUEL VIRGÍNIA – Eu sou uma filha do rádio da periferia de São Paulo. Cresci ouvindo estes artistas que o sudeste capta do Brasil: Ivete Sangalo, Alcione, Beth Carvalho, pagode, rap. Sempre fui uma criança da televisão, nas décadas 90 e 2.000. Depois da adolescência pra fase adulta e também por ter ido para a Bahia, ampliei bastante a minha construção musical. A minha construção de identidade ampliou coisas que eu já tinha em desenvolvimento. Sempre fui envolvida com som de percussão. Artistas como Daniela Mercury me envolviam. Cantarolar, sempre cantarolei, mas cantar, formar o corpo de cantora, é bem recente e também tá em processo de construção na minha identidade musical.

Na casa da minha bisavó, onde eu passei muito tempo, tinha um barranco e umas escadas e, pra mim, parecia que eu saia da porta e entrava num palco. Tinha umas coisas velhas de construção que eu entortava e ficava parecendo um microfone. Então, eu tratava como se o quintal fosse o meu público e as escadas me davam acesso a este palco que era o barranco. A questão territorial e cênica sempre esteve em construção em mim.

Também fiz teatro amador, teatro Bibi Ferreira… Isso trouxe a questão dramática, e a fusão do drama com a música trouxe também as grandes intérpretes, como a Gal e a Elis Regina. Quando passei a ouvi-las de verdade, houve uma fusão de estética muito forte.

img_0356
Raquel Virgínia: “É muito importante que se criem figuras populares trans” | Foto: Priscila Lopes

CATARINAS – E a composição, como nasceu pra vocês?

RAQUEL VIRGÍNIA – Sempre escrevi. Dia desses uma amiga me lembrou que escrevi uma música pra ela cantar numa peça de teatro na primeira série. Já tive uma onda de compor axé. Foi um momento bem primário… Tenho uma pasta imensa de músicas de axé registrada na biblioteca nacional (risos). Aos quinze anos, eu tava compondo músicas pra entregar pra Ivete Sangalo. Aí em um momento eu decidi que eu ia cantar as minhas músicas.

RAFAEL ACERBI – Tive muitas bandas em Minas e compunha muito. Era um som mais rock, mais ingênuo. Quando a gente se conheceu e eu conheci a poesia das meninas a gente começou a trabalhar e aprofundar e veio a vontade de amadurecer a composição. Passei a compor aprendendo com elas, com o lirismo, com o uso da palavra, como a estética daquela letra se transforma, toma forma. Com elas eu passei a compor mais canções porque antes eu compunha muita música instrumental no violão, dedilhando. Mas colocar no papel, pensar a letra e o arranjo, foi mais com elas.

ASSUCENA ASSUCENA – Eu sempre tive uma relação muito forte com a palavra. Escrevia muita poesia desde criança. Mostrava pra professora na escola e ela me colocava pra ler em cada sala-de aula. Então, meu primeiro encontro com a canção não é na música, é na letra. Eram composições muito românticas. Quando me percebo compositora mesmo foi na faculdade, quando mostrei algumas composições pro Rafa e pra Raquel. Canções muito juvenis e ingênuas na forma de compor, mas era uma realidade que se manifestava dentro de mim.

CATARINAS – E vocês compuseram juntas as músicas deste primeiro disco?

ASSUCENA ASSUCENA – Nós compusemos separadas mas trocávamos muita experiência sobre a composição e a palavra de cada uma. Foi difícil compor juntas no primeiro momento e casar os estilos, que são totalmente diferentes. A gente tem canções juntas mas ainda serão para próximos trabalhos. O Rafa também compõe muito bem…

RAFAEL ACERBI – Mas neste disco as músicas são das meninas.

Este trabalho veio muito pronto. As meninas têm uma maturidade de canto que já propõe o lugar onde a voz quer estar. A Raquel cantando “Comida Forte”  já disse “quero berimbau, quero chão, quero baião, quero terra, chão batido”… Já tinha uma linha melódica que ela apresentava e uma ideia de por onde a música devia caminhar.

Em meio a estas conversas que a gente tinha, escutando Gal Costa a noite inteira e tomando vinho, os arranjos foram surgindo.

CATARINAS – Pelo menos aqui na região sul, as músicas de vocês chegaram ao mesmo tempo que as do Liniker e Johny Hooker. Vocês se vêem como parte de um movimento que marca a visibilidade trans na música popular brasileira contemporânea?

RAQUEL VIRGÍNIA – A minha pretensão é ser conhecida como alguém que propôs linguagem. A questão da visibilidade trans tá diante de um paradigma que não é meu, é da sociedade. Claro que eu também faço parte desta sociedade, mas eu tou propondo linguagem; a sociedade vai ter que aceitar minha linguagem por que eu sou trans. A minha música vem primeiro. Sou uma criadora, uma artista. Quero fazer vários discos diferentes e poder ter artistas muito legais à minha volta, conseguir propor estilo. Acho que a visibilidade trans ainda é um paradigma pra sociedade por que  ela não está preparada e não quer se preparar. A sociedade vai ter que entender que vai ter mulher trans propondo estilo, cantando…

ASSUCENA ASSUCENA – … e que vai estar no centro de um palco, de teatros e casas importantes. A visibilidade é importante por que sempre tentaram nos invisibilizar.

Quando a travesti fala “bota a cara no sol, querida”, aparentemente é só uma expressão, mas tem um conteúdo de violência por trás dela. Ela traz uma realidade de suicídio, de opressão. De nos tratar como seres noturnos, colocar pra debaixo do viaduto e das poucas luzes da madrugada. É uma expressão que tem a ver com cotidiano de uma travesti. Muitas, inclusive, não saíam durante o dia.

Já existiu no Brasil uma política de extermínio da população trans e travesti. E ainda existe. Mas durante a ditadura militar existia uma política institucional, de matar mesmo. Ou seja, a nossa sociedade tá assentada sob uma base machista, patriarcal, transfóbica e a gente tá nela. A base é hegemônica. Lógico que tem uma contra-hegemonia aí. Que tem uma juventude que tá querendo se voltar contra.

Tem um projeto de lei que os deputados estão querendo aprovar pra não ter doutrinação ideológica dentro das escolas. Mas o que é doutrinação ideológica pra um deputado do PSDB que tá propondo isso? A gente sabe onde ele quer chegar. Muitos professores de história tem um pensamento mais libertário, tendem ao marxismo e outras correntes de esquerda, e existe de fato uma luta hoje no Brasil pra invisibilizar as mulheres, as mulheres negras. Por que a gente conquistou muitos direitos nos últimos anos. As pessoas me perguntam se há uma onda conservadora por aí. Sempre teve: o Sarney, o Bolsonaro, o Eduardo Cunha sempre estiveram lá. O que aconteceu foi que a gente conquistou direitos e eles querem tirar, como o nosso nome social, por exemplo. Por que eles não querem que a gente apareça.

RAQUEL VIRGÍNIA – É muito importante que se criem figuras populares trans, mas não de forma jocosa. Isso tem que ser algo imediato. Pessoas que vão, por exemplo, tomar café da manhã com a Ana Maria Braga e falar duas frases de efeito, por que isso ajuda a tirar os estigmas diante de milhares de pessoas. Não dá mais pra disputar com a câmara ou com o governo federal. Temos que ir por outras vias para que estes projetos de lei sejam ridicularizados pela população. A gente como artista tem que tentar desmistificar algumas coisas.

ASSUCENA ASSUCENA – Eu acho que a arte tá contribuindo pra isso. De alguma maneira, a gente é parte de um movimento sim. A gente chega junto com Liniker, se lança no mesmo ano, inclusive, e Johny hooker um pouco antes. Este movimento tem um vestuário, um comportamento colocado… A música sempre fez isso: agiu na colocação de gírias, de tribos. Existe uma parcela da sociedade que tava carecendo dessa linguagem. A gente também é produto de um movimento social, inclusive de um movimento feminista. O movimento LGBT deve muito ao movimento feminista por esta busca de liberdade comportamental. É uma revolução dos costumes, é uma revolução do corpo, um corpo livre que o movimento negro também já traz. Então, chegar artistas com uma qualidade estética como a nossa dando um “foda-se” e “colocando a cara no sol” é uma boa notícia.

CATARINAS – Vocês se conheceram na instituição da universidade. Como foi a experiência neste espaço institucional?

ASSUCENA ASSUCENA – Eu amo o curso de História. O estudo historiográfico é lindo. Mas a universidade não. Institucionalmente ela ainda é racista, machista, dominada por quem também domina a sociedade. Fomos convidadas para cantar o Hino Nacional na Câmara dos Deputados e é impressionante a quantidade de homens que decidem a nossa vida cotidianamente. O percentual é esmagador. Na universidade é a mesma coisa. Tinha um indígena atrás de nós pra entrar na Câmara… Quem decide a demarcação das terras indígenas? Quem decide quem vai ter cota racial nas universidades? Na USP não tem até hoje. Mas o tempo da universidade foi muito importante, o nosso encontro lá dentro.

CATARINAS – O que o feminismo significa pra vocês?

RAFAEL ACERBI – O feminismo é uma revolução mesmo. É muito importante que o debate tenha surgido de maneira mais forte nos últimos tempos e que eu, enquanto homem, possa debater meu machismo e entender o lugar da mulher na história. O nosso disco se chama “Mulher, a gente tem duas mulheres na linha de frente deste projeto. O feminismo traz este histórico de opressão que coloca a mulher sempre numa relação de subserviência. Me permite entender este processo e os contextos das relações de classe e de raça, a culpa que a gente carrega neste sentido. Então, o feminismo pra mim é uma busca, estou sempre aprendendo neste debate.

RAQUEL VIRGÍNIA – Eu me sinto completamente conectada com o debate do feminismo negro, com todas as minhas amigas negras que cotidianamente vivem uma série de questões que eu consegui visualizar muito fortemente. Eu sou uma mulher negra trans, minha mãe é uma mulher branca mas mesmo assim as mulheres brancas da minha família são mulheres brancas pobres, então eu consigo entender de forma muito orgânica muitos debates que o feminismo negro traz, as contradições… E consigo enxergar organicamente dentro do feminismo por esta perspectiva. O feminismo negro pra mim é como um processo de organização, debate e embate. Eu penso a minha imagem e penso a minha disputa o tempo todo. Nunca estou desatenta. Eu até recuo às vezes pra ficar suportável em certos ambientes. Convivo muito com muitas pessoas brancas – nesta sala sou a única negra.

A nossa sociedade não consegue conceber ainda, todo mundo tá tentando entender ainda o que é a possibilidade da mulher negra num lugar de poder por que altera muita coisa. Eu estou neste embate, estou num espaço de poder.

Na última eleição fui convidada a me posicionar, a gente foi tomar café com o prefeito, pediram pra eu gravar um vídeo. Eu já entendi que eu estou no meio deste debate como uma travesti negra. E ainda deixando o meu corpo aparecer do jeito que eu quiser, o que é um salto mortal na cara de todo mundo. Por que eu dou a minha letra. Eu sou ex-aluna da USP e eu dou entrevista dizendo que eu odeio a USP. Eu falei em uma rede social que transei com um jogador de futebol. Este debate eu sinto complemente no meu corpo. Eu acredito que cada um deve sentir no próprio corpo como ele responde às opressões. Estou começando a ler Angela Davis (Mulheres, raça e classe) e tá sendo muito importante entender a perspectiva que ela traz de como a mulher negra está num processo de escravidão. Esta questão da feminilidade, da mulher mais fraca, frágil, essas teorias do século 19, ganham muita força. Tudo isso era o contrário com a mulher negra no processo de escravidão. Se de um lado a mulher branca era protegida durante a gravidez, do outro lado tinha uma mulher negra grávida levando chicotada. E produzindo, trabalhando nas plantações da América. Os lugares são diferentes porque há uma raiz diferente, no processo da família negra, da memória. É muito intenso. Mas tem que ter leveza no jogo.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

Últimas