Por Cristiane Brasileiro*

Li a notícia de que Aquarius sofreu mais uma rasteira oficial: foi preterido em favor de um filme absolutamente obscuro como o representante brasileiro na próxima disputa pelo Oscar. Pra quem estava acompanhando a saga, isso já não seria imprevisto, considerando que a comissão encarregada dessa escolha foi contaminada de forma tão ostensiva por escolhas políticas viciadas que os outros concorrentes de peso simplesmente haviam retirado suas candidaturas em favor da obra de Kleber Mendonça.

Não vou, no entanto, falar de derrotas, mas de vitórias.

Como bem disse Anna Muylaert, a brava diretora que tem sacudido o país desde o ano passado, “o problema de dar um golpe é ter que dar mais infinitos golpes para manter o golpe principal”. A essa tese geral, corretíssima, eu no entanto contraporia uma outra: a força da resistência ao golpe se liga a infinitas outras forças que se dedicam a resistir politicamente em todas as frentes.

É verdade que o tal “golpe principal” marcou a ferro a primeira recepção de Aquarius: a estreia do mesmo no Brasil, numa sessão reservada à imprensa, ocorreu exatamente no dia em que a presidenta Dilma Roussef, aos 68 anos, foi ao senado se defender do impeachment e encarar publicamente, e de peito aberto, uma arguição que demorou cerca de 14 horas. Com essas coincidências, os gritos de “Fora Temer” que foram ouvidos naquelas sessões de estreia misturaram quase que indistintamente as mensagens das ruas e do próprio filme. Antes mesmo disso, no entanto, ainda no festival de Cannes, o engenhoso protesto feito pela equipe de Aquarius, empunhando cartazes que denunciavam ao mundo o golpe politico em curso no país, já selava uma trajetória de enfrentamento que, ao menos desde então, vem determinando as barreiras esdrúxulas que o filme tem enfrentado – e também parte das paixões que tem despertado e das leituras que dele vão sendo feitas.

Noutro nível, no entanto, quero afirmar que a força política de Aquarius não depende dessas circunstâncias políticas mais visíveis, e se enraíza muito fortemente no que eu chamaria de um princípio feminino da resistência, da coragem e da subversão.

Chamo a atenção, por isso, para um aspecto do filme que tem sido menos explorado pela crítica especializada: o fato de que, ao criar uma metáfora da resistência política no Brasil de hoje, Aquarius assume a perspectiva de uma personagem mulher sexagenária. Acredito que isso esteja longe de ser um mero detalhe a respeito do filme ou uma escolha eventual, subordinada apenas à presença de uma determinada atriz. Pelo contrário: é esse ponto de vista feminino e bem vivido que determina muito da sua singular força poética, das suas raízes culturais e ainda o lugar que vai ocupando nos embates políticos mais profundos que vivemos no Brasil de hoje.

Lembro, nesse sentido, uma pista que tem sido pouco aproveitada nas análises do filme: seu título repete o nome do edifício onde a protagonista mora, mas também retoma o título da canção que virou um hino da contracultura a partir do musical Hair e percorreu palcos e telas do mundo a partir de 1969. No filme homônimo de 1979, era também uma mulher que dava o tom do que se desejava anunciar: com voz poderosa e flores brancas nascendo dos cabelos black power, ela girava onipresente e indomável como uma profeta laica, anunciando não menos do que uma Nova Era. No Brasil, vale ainda lembrar: a tigresa Sônia Braga, cantada por Caetano Veloso, também “trabalhou no Hair”. E, tendo marcado tão fundo o imaginário brasileiro na TV e no cinema ao longo das últimas décadas, reapareceu agora como a luminosa protagonista de num filme cuja primeira parte foi intitulada, não por acaso, “Os cabelos de Clara”. Percorrendo ali uma trajetória que vai dos cabelos quase raspados depois de um câncer à renovada e desafiadora cabeleira dos hippies, a protagonista encarna muito concretamente o que a letra de Taiguara traduz na trilha sonora: “Hoje/ trago no corpo as marcas do meu tempo/ Meu desespero, a vida num momento/ a farsa, a fome, a flor/ o fim do mundo.”

Afinado assim, desde o título, à força das revoluções de cunho “micropolítico” das décadas de 60 e 70, Aquarius ao mesmo tempo homenageia essa linhagem, a reinterpreta e a concretiza. Finca os pés, sim, nas lutas que se dão através do corpo e no nível das relações pessoais desde a cena inicial, quando a tia da protagonista faz questão de lembrar, nas homenagens que recebe nos seus 70 anos, da “revolução sexual” que se incorporou de forma central à sua própria vida. Por outro lado, a força criada e recriada nessa dimensão desmente, no filme, a caricatura usual que se passou a fazer comumente da contracultura como um mero conjunto de roupas floridas vestindo jovens excitados e alienados por experiências lisérgicas. Pelo contrário, ela se expressa muito claramente na luta de uma mulher que resiste ao assédio de uma construtora interessada destruir um velho e charmoso edifício pra construir sobre ele mais um espigão impessoal desses que poluem as paisagens praianas brasileiras. Nesse sentido, o filme retoma a linha central da própria contracultura exposta em Hair, que também lá se traduzia por lutas muito concretas contra o alistamento militar obrigatório pra lutar na Guerra do Vietnã, contra a supremacia política alcançada através de impulsos imperialistas predatórios, contra a própria cultura belicista e a ideia de “virilidade” competitiva na qual ela se baseia.

Desconsiderando-se essas pistas frontais, no entanto, o filme ainda poderia se tratar só de uma singela crônica acerca de uma senhora burguesa apegada à sua propriedade ou ao seu passado. Mas é justamente aí que as lógicas políticas que se confrontam, no filme, mostram sua força. Para a protagonista Clara, está muito claro que não faz sentido vender o próprio apartamento – mas não porque a oferta da construtora, que ela sequer se dispõe a ver, não possa ser lucrativa. É justamente fora dessa lógica que a mulher se move, e por isso reafirma que o lugar que sua história habita simplesmente não está à venda. E quanto mais aumenta a pressão da construtora, e quanto mais avança seu cerco falsamente polido e verdadeiramente violento, mais a personagem rejeita qualquer negociação. Pois bem: num mundo regido tão largamente pelo dinheiro, não estar à venda perturba a ordem das coisas. Reafirmar tão patentemente a importância da memória e dos afetos, da mesma forma, desafia o furor destrutivo que tem regido a contínua expansão do capitalismo, e ainda rejeita o caráter oco dos homens que se colocam a seu serviço. Da mesma forma, quando a personagem atravessa tão conscientemente a linha que separa os ricos e os pobres, na praia, contraria o afã obsessivo de distinção social sobre o qual se estrutura a constrangedora miséria dos abastados. Coerentemente, na cena em que a personagem expõe de forma mais explícita sua indignação contra a “ignorância” reinante, ela ataca de forma muito direta não qualquer analfabetismo dos pobres, como os palanques costumam fazer, mas justamente a retórica rasa dos “bem nascidos”, cheio de diplomas focados em “business” e esvaziados de qualquer formação humanística ou sensibilidade diante do outro.

Assim, quando a protagonista se dispõe a defender seu imóvel, está ironicamente protegendo o que não é nem tão palpável nem tão exclusivamente seu: os tais “bens imateriais”. E quando parece cultivar o passado, está justamente se dispondo a abrir caminho para outras concepções de tempo menos lineares e monolíticas: no mundo dos afetos há muitas idades sobrepostas, mortos que estão vivos, álbuns de retrato que perturbam o sono quando reabertos, velhas garrafas lançadas ao mar que podem encontrar destinatários renovados através da força sempre meio imprevisível das correntezas. Da mesma forma, quando a personagem se empenha em cultivar o que se costuma ver como “vidinha doméstica”, chamando para a convivência próxima seus filhos, netos, vizinhos e velhas amizades, está reiterando a existência e a relevância de laços que se dão e se fortalecem muito à revelia da corrida desenfreada por dinheiro que tanto se impõe sobre as nossas vidas.

Que exatamente esse mundo tenha se ligado tão de perto à existência das mulheres, ao longo dos séculos, nos dá uma boa pista do grau do grau de resistência que temos exercido no dia a dia, da capacidade de trazer o coração à tona de que tem sido feita nossa coragem, da força subversiva que tem estado embutida nos maiores e nos menores gestos que temos feito e nos mundos alternativos que temos criado, habitado e mantido de pé mesmo diante de todos os assédios sofridos.

É nesse sentido, aliás, que entendo Sônia Braga dizendo em entrevistas que “não é atriz”. Como ela mesma tem explicado, há sob Gabriela, Júlia Matos, Dona Flor ou Clara um mesmo rio correndo, um mesmo “elemento muito forte”, uma “verdade profunda” que ela sente e nos devolve como capacidade de dançar com todos e de dançar sozinha, ou ainda como discreta e vitoriosa força corrosiva. Não se trata só de profissão ou técnica, mas de impulsos vitais nunca completamente subordinados a lógicas externas e, por isso mesmo, intrinsecamente subversivos. Trata-se da vida que afinal nunca pode ser de fato avaliada por prêmios e contratos – antes, é precisamente ela que vem sempre testando, por maior ou menor compatibilidade, a eventual legitimidade daquelas outras esferas.

*Mineira que vive no Rio há quase 15 anos. Doutora em Literatura, professora na área de Linguagem e coordenadora da Fundação Cecierj. Mãe de dois.

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