Até a Constituição de 1988, as agricultoras não eram reconhecidas como trabalhadoras e, portanto, não tinham direito de se aposentar. Mais do que dinheiro, equivalente a um salário mínimo, a aposentadoria trouxe autonomia para as mulheres do campo. Com a reforma da Previdência do Temer, o duro cenário de dependência das mulheres pode voltar.

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Nem bem clareou o dia, Delfina Meotti Araldi, de 67 anos, já esta de pé na cozinha preparando o café. Enquanto espera a chaleira de água esquentar, ela aproveita para ariar o fogão a lenha. Arruma a mesa, passa o café, limpa uma coisa, lava uma louça, senta para comer. Em seguida o marido acorda, senta à mesa e ela já se levanta para a missão diária de ordenhar as vacas.

As lides domésticas seguem sendo parte do dia a dia de Delfina mesmo depois da aposentadoria, aos 55 anos. O que mudou foi a autonomia que a remuneração trouxe.“Dificilmente uma mulher da roça pega na mão e administra o dinheiro da produção. O dinheiro da minha aposentadoria sou eu que decido no que vou gastar e onde vou investir, meus filhos e meu marido não interferem nas minhas decisões”.

Foi apenas na Constituição de 1988 que as mulheres tiveram reconhecido o direito de se aposentar. O dinheiro, equivalente a um salário mínimo, trouxe a autonomia para milhares de mulheres do campo como Delfina.  Antes, as agricultoras não eram reconhecidas como trabalhadoras. O regime de aposentadoria do meio rural criado em 1963 previa aposentadoria para as mulheres. Em 1971, a lei mudou e passou a garantir aposentadoria de meio salário mínimo somente para uma pessoa da família: a que fosse responsável pelo sustento da casa, papel culturalmente representado pelos homens. Para as mulheres receberem, somente se não fossem casadas.

A garantia da aposentadoria das trabalhadoras do campo na Constituição de 1988 é fruto de uma conquista histórica da luta dos movimentos campesinos, que estava muito forte nos anos 80. Na mesma época, também surgiram muitas organizações,  como o Movimento das Mulheres Campesinas – MMC, que tinha entre suas bandeiras a luta pelo direito a aposentadoria para as mulheres agricultoras.

Para a advogada e presidenta do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP, Jane Berwanger, a conquista foi um pagamento de uma dívida histórica dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Jane é uma das estudiosas do tema da aposentadoria das agricultoras. Segundo ela, na assembleia constituinte a redação foi aprovada por unanimidade, pois tinha sido fruto de um acordo dos líderes de partido. Em suas pesquisas, Jane descobriu um fato curioso que aconteceu no momento da votação. O então presidente do Congresso, Ulysses Guimarães, leu o texto e quando terminou, disse: “Eu não entendi nada, mas já que está assinado por todos os líderes coloco em votação, quem concorda permaneça como está, quem não concorda se manifesta”.

Deputada constituinte, Luci Choinacki participou da construção do processo que garantiu o reconhecimento da mulher do campo como cidadã na Constituição. “Me levaram na Câmara dos Deputados para defender a aposentadoria dos agricultores, principalmente das mulheres. Fizemos um longo debate com os parlamentares, alguns resistiram, usavam as mesmas desculpas que usam hoje, mas conseguimos convence-los até chegar ao reconhecimento constitucional”, conta a ex-parlamentar, que manteve a defesa das mulheres, agricultoras e donas e casa, entre as principais bandeiras dos mais de trinta anos da sua carreira política.

Depois da conquista do artigo 201, que prevê a aposentadoria para as mulheres trabalhadoras rurais na Constituição, foi preciso lutar também pela regulamentação da lei. “Foram anos de muita mobilização, de debate, de lutas, de idas à Brasília, de acampamentos, de ocupações do ministério”, recorda Justina Cima, uma das lideranças do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina.

A lei foi regulamentada em l994 e de lá para cá, as mulheres são a maioria das beneficiadas da aposentadoria no meio rural. De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas – DIEESE, até 2015 eram 4.083.929 as mulheres aposentadas no meio rural e 2.9i7.539 de homens. Para Jane, a aposentadoria representa um dos maiores mecanismos de distribuição de renda e de emancipação da mulher do campo.

“Até essa legislação entrar em vigor, as mulheres no campo não tinham nem carteira de identidade, nem CPF, elas só tinham certidão de casamento. Eram consideradas ajudantes no meio rural. Nunca tinham dinheiro para nada, o dinheiro era do homem, pois  o machismo é muito mais forte no meio rural. A partir do direito a aposentadoria houve o reconhecimento de uma profissão, de um trabalho de uma vida inteira. As mulheres pela primeira vez tinham dinheiro próprio, isso representou uma sensação de libertação, despertou o sentimento do ‘agora é meu, eu não preciso mais pedir dinheiro’”.

Jane destaca que as mulheres sempre contribuíram na vida do campo. Muitas, até mais do que os homens por causa da dupla jornada. Mas só com a aposentadoria começaram a ter dinheiro para usar como quisesse. “A partir daquele momento ela tinha o dinheiro dela e isso provocou uma mudança fantástica no meio rural. A gente passou a ver que elas começaram a pintar o cabelo, colocar dente, fazer a unha. A valorização pessoal é um aspecto social fundamental”.

Foi o que aconteceu com a agricultora Lídia Szczygel, de 70 anos. Com a aposentadoria, ela pode sustentar a casa e ainda usar o dinheiro para gastos pessoais. Pinta o cabelo, faz as unhas toda semana, compra roupas novas.“Não gosto nem de lembrar daquele tempo. A gente só comprava roupa em brechós, isso quando a gente comprava, por que a maioria eram doações de outras pessoas. Eu não tinha acesso ao dinheiro da produção e até nem sei como a gente conseguia se manter, por que todo mês tinha uma despesa nova pra pagar. Era um boi doente, um financiamento, uma despesa com máquina, a última coisa a se pensar era gastar dinheiro com a gente. A prioridade era manter a roça”.

Receber a aposentadoria, para muitas mulheres do campo, não significou parar de trabalhar, mas o benefício fez com que diminuíssem o ritmo do trabalho e permitiu que investissem em equipamentos que facilitam o seu dia a dia. Luci Choinacki lembra de uma filha de agricultora que a abordou e depositou nela a salvação da vida de sua mãe.

“Um dia uma jovem me encontrou, me deu um abraço apertado e me disse que eu havia salvo a sua mãe. Eu não entendi o que ela estava falando, até ela contar que sua mãe é agricultora, tinha um grave problema nas articulações e que logo que se aposentou, a primeira coisa que ela fez foi comprar uma mangueira para trazer água para mais perto da casa e evitar que ela tivesse que caminhar dois quilômetros com baldes de água nas costas” conta, emocionada, a ex-deputada.

Outro saldo da aposentadoria para as mulheres do campo foi o acesso a espaços de decisão, como sindicatos, associações, cooperativas e conselhos de igreja. Como no interior o transporte público não existe e as distâncias são longas, elas dependiam do marido e dos filhos para levá-las nas reuniões e compromissos do movimento. Assim que passaram a receber o seu dinheiro, muitas delas fizeram carteira de motorista e outras até compraram o próprio carro.

A educação dos filhos e netos foi outro investimento possível com o dinheiro da aposentadoria. Delfina tem orgulho de falar que parte da faculdade de uma de suas filhas foi paga com dinheiro da sua aposentadoria. Para ela, os homens não vêem os estudos como um investimento.

Muitas agricultoras viram, ainda, na aposentadoria, a chance de retomar os próprios estudos. Justina, liderança do MMC, é um exemplo disso. Assim que se aposentou, começou a estudar para concluir o ensino médio, depois conseguiu uma bolsa de estudos pelo Programa Universidades para Todos – PROUNI, do Governo Federal, e aos 60 anos se formou em Pedagogia. “Consegui realizar o que é um sonho de que grande maioria das mulheres do campo foram excluídas”, conta.

Reforma da Previdência ameaça independência das mulheres do campo

O texto inicial da Reforma da Previdência proposta por Michel Temer previa aposentadoria somente aos 65 anos para homens e mulheres do campo e da cidade. Além disso, a redação propunha a mudança na forma de comprovação de acesso ao benefício por parte dos trabalhadores rurais. Atualmente, eles estão no patamar de “segurado especial” e contribuem sobre o valor de venda da produção para o grupo familiar. Com a reforma de Temer, os/as agricultores/as terão que pagar mensalmente, de forma individual, uma contribuição ao INSS, num modelo parecido com o já existente dos trabalhadores autônomos.

A proposta apresentada no início desse ano, gerou muito debate, pois representa uma mudança drástica na estrutura de sustentação solidária, conquistada na Constituição de 1988. Em nota técnica divulgada em março, o DIEESE explica o impacto na vida das mulheres caso a medida seja aprovada como ela afeta especialmente aas agricultoras. “A trabalhadora rural será penalizada duplamente: por ser mulher, e sofrer a discriminação de gênero no ambiente de trabalho e na família, e por trabalhar no campo, em condições mais austeras, exigentes e desprotegidas do que o trabalho normalmente executado na área urbana”, explica a nota.

Apesar de alguns recuos por parte da base do governo do Temer, apresentados no texto substitutivo no último dia l9 de abril, como a diminuição para 57 anos para as trabalhadoras rurais e 60 anos para os homens, na avaliação de Lisete Bernardi, liderança da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de Santa Catarina – FETRAF/SC, a reforma continua sendo repudiada por todos os movimentos, pois o projeto na sua essência pretende destruir a seguridade social dos brasileiros. “Estabelecer uma idade e tempo de contribuição altos para todos os trabalhadores, faz com que diminuam as expectativas do povo de se aposentar e desestimule os trabalhadores e trabalhadoras a contribuírem com a Previdência Social, o que prejudica a arrecadação e a garantia das políticas prestadas pelos pilares da previdência”, explica Lisete.

Justina destaca que uma das críticas centrais da reforma é o fim do seguro especial aos agricultores e agricultoras. Segundo ela, a contribuição se dá a partir da venda da produção e também da manutenção no campo. “Somos nós os responsáveis pelas nossas estruturas, essa proposta trata igual os trabalhadores rurais e os trabalhadores urbanos. Exigindo uma contribuição em dinheiro mensal, que nós sabemos que vai excluir os mais pobres e principalmente, vai excluir as mulheres”, destaca.

Jane Berwanger explica que não há como estabelecer uma contribuição mensal, já que as condições de produção do campo são muito variáveis. “Tem ano que a safra dá bem, no outro ano não dá. Tem ano que o preço é melhor que no outro. Estabelecer um valor mensal é excluir a aposentadoria dos trabalhadores rurais, tirar as perspectivas de continuação dos filhos e filhas no campo e aumentar o êxodo rural”,alerta a advogada.

Novos personagens, velhos discursos
Segundo a ex-deputada Luci Choinacki, as justificativas para a reforma foram as mesmas de 30 anos, quando não queriam reconhecer as mulheres do campo como trabalhadoras. “Continua o discurso daqueles que não querem o direito das trabalhadoras, que alegam que dá muito gasto, que elas não trabalham, não produzem, não contribuem. Não fazem a conta de quantas horas a mulher trabalha na roça, que lá não tem coleta de lixo. A mulher que não tem creche para as crianças, que precisa trabalhar e cuidar dos filhos e netos, faz mil e uma coisas, dá uma contribuição enorme pro estado e, ainda por cima, produz os alimentos. Como questionar que as mulheres não estão produzindo?”, indaga Luci.

Com as mudanças propostas, aponta Jane, a previdência social perde o sentido de solidariedade e seguridade do povo. Para a pesquisadora, o impacto da reforma da previdência fará com que muitos e muitas trabalhadoras rurais morram antes de receber o benefício.

“As pessoas terão que reservar um dinheiro mensal para pagar a contribuição. No campo é diferente da cidade, em que há um salário mensal. Muitos terão que optar entre pagar um remédio ou pagar a previdência. E aí eu me pergunto: para que serve o estado? Essa reforma é de uma previdência que leva a morte, uma morte antecipada”, enfatiza.

Desde antes do anúncio do texto da reforma da previdência, os movimentos sociais rurais procuram conscientizar  trabalhadores/as do campo, chamando para a resistência a fim de evitar o retrocesso de uma conquista que trouxe autonomia e melhores condições de vida às agricultoras.

A FETRAF/SC organizou debates em todos os seus sindicatos e, junto com o MMC/SC, mobilizou milhares de mulheres no dia 8 de março. Protestos em diversas cidades do estado cobraram dos deputados e senadores o voto contrário à reforma da previdência. No dia 28 de abril, as trabalhadoras do campo estiveram junto com as trabalhadoras da cidade na maior greve geral dos últimos anos.

“É este olhar da emancipação das mulheres, de conseguir estudar, conseguir participar mais ativamente das coisas da sociedade, ter poder de decisão sobre o seu dinheiro, garantir uma vida melhor para sua família, melhorar as suas condições de trabalho, é tudo isso que está em risco com essa Reforma da Previdência”, salienta Justina.

Lídia participou de um dos trancaços de rodovia no oeste catarinense em protesto contra a reforma durante a Greve Geral. Foi uma das primeiras greves de que pode participar, mas, segundo ela, muitas terão que acontecer para que a mudança na previdência não seja aprovada e não prejudique os trabalhadores, em especial, as agricultoras. “Hoje eu já estou aposentada, sei o quanto o dinheirinho da minha aposentadoria transformou a minha vida. A gente não pode voltar atrás. Quero que minhas filhas, netas e amigas também consigam o que eu consegui: ter uma vida digna e ser dona do seu próprio dinheiro”.

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