Era manhã do dia 21 de agosto, Márcia de Lourdes Friggi chegou para dar a sua primeira aula de Língua Portuguesa numa turma do EJA (Escola de Jovens e Adultos) de uma escola municipal de Indaial. O que era para ser mais um dia normal de aula terminou na delegacia. Professora Márcia foi agredida por um aluno de 15 anos. Casos de violência nas escolas são comuns no Brasil. De acordo com pesquisa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) o país lidera o ranking de agressões contra professores.

Mas a agressão contra Márcia Friggi repercutiu em todo o Brasil. A foto com o rosto ensaguentado e o desabafo postado nas redes sociais estampou páginas de vários jornais e sites de notícias. Foi no mesmo espaço virtual que ela sofreu a segunda violência. A professora teve sua vida revirada. Cada palavra publicada foi usada como justificativa para o soco que a educadora levou no rosto. Deputados federais conhecidos no país pela linha conservadora usaram a gravação editada de uma entrevista de Márcia a uma rádio gaúcha para acusá-la de incitação à violência. No mesmo dia, a professora passou de vítima a vilã.

Passado um mês da agressão, a filha da professora e psicóloga Ana Carolina Friggi Ivanovich, que também foi vítima da violência e intolerância das redes sociais, escreveu com exclusividade para o Portal Catarinas. Para Ana Carolina, mulher e professora são sujeitos que a sociedade não valoriza. “A sociedade não valoriza o professor e mais uma vez, leia-se por sociedade: nós. Logo, tudo que não é valorizado pode ser descartado, sucateado, esquecido, mal tratado, espancado e desamparado”, escreveu.

Leia o texto na íntegra:

Sobre Santos, vítimas e culpados

Por Ana Carolina Friggi Ivanovich

Um dos nomes dela é uma homenagem a uma dama imaculada que aparecia, constantemente, para uma menina camponesa que se chamava Bernadette, por volta de 1.858 em uma vila da francesa. A primeira aparição da Senhora aconteceu no dia 11 de fevereiro e, todos os anos, em alguns países, a Igreja Católica celebra uma missa em homenagem a ela. Há uma longa tradição de interpretar o Cântico dos Cânticos (4,7) que diz: “Tu és toda formosa, meu amor, não há mancha em ti”, como alegoria às suas aparições. O nome do meio foi escolhido pelo Monsenhor Pedro, amigo da família, por ter considerado um milagre a menina ter nascido viva após uma gestação condenada. A mãe, católica, aceitou. Certamente movida pelo desejo de que a filha fosse abençoada com as dádivas da Santa.

O nome dele tem origem hebraica e quer dizer, “aquele que acrescenta” ou “acréscimo do Senhor”. No catolicismo sua figura é de fundamental importância. É descrito como um homem incrivelmente nobre, trabalhador, justo, responsável e principalmente obediente. Tão obediente que depois de ouvir as mensagens dos anjos, aceitou sua mulher e seu destino. Testemunhou o grande milagre da vida e encaminhou os primeiros passos de seu “filho” em sua passagem pela terra, perpetuando seus princípios. Apesar de sua origem estrangeira, atualmente, é um nome que carrega toda brasilidade e cultura do nosso povo.

Os traços de santidade em ambas as personalidades,  findam-se em seus nomes. Não há santidade. Não existem almas imaculadas ou traços tão nobres quanto às narrativas antigas tentam nos contar. Não há santidade nem na Santa, nem no Pai Escolhido. A razão é óbvia: somos todos genuinamente humanos. E como humanos, todos nós somos constituídos eternamente. Nunca paramos de nos constituirmos humanos. Tornamo-nos humanos e construímos nossa personalidade todos os dias, até o último dia das nossas vidas. Fazemos isso através de todas as relações que estabelecemos em todos os níveis, da nossa história, da cultura em que estamos inseridos, dos discursos que são produzidos sobre nós e os outros. Através da realidade objetiva em que nos encontramos e através dos sonhos que temos, ou da ausência deles.

Para decepção do Monsenhor Pedro, da minha avó e de milhares de pessoas que não economizam seus julgamentos, não há santidade. Pasmem – em ninguém. Porém, as pessoas assustam-se com essa descoberta e vociferam suas críticas e julgamentos como se só fosse permitido ser vítima, caso lhe seja concedido o lugar de santidade ou alma imaculada. Nem a Santa, nem o Pai Escolhido são imaculados. Mas contra todos os argumentos: são vítimas.

O Pai Escolhido foi constituído em meio a uma realidade cheia de vulnerabilidades e precariedades. Foi constituído a partir dos discursos sobre si que ouviu e encarou como sendo verdade e, a partir do que foi lhe apresentado sobre o mundo e a vida. Isso é tudo que ele conhece. O Pai Escolhido é fruto de uma sociedade desigual. Mesmo com esforços no âmbito da Assistência e na garantia de direitos para crianças e jovens, a sociedade ainda tem fracassado. A sociedade instituiu esses jovens, é formadora deles. O Pai Escolhido é vítima da sociedade e do fracasso dos seus sistemas em tentar ajudá-lo. E quem é a sociedade? Pasmem: nós.

A Santa imaculada, apesar de ter cometido o pecado de ser genuinamente humana, é vítima. Quatro vezes vítima. Várias vezes vítima.

Primeiro, é vítima da agressão física,  junto com milhões de mulheres. De acordo com a Pesquisa DataSenado de 2015, estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos no Brasil. Depois, é vítima do discurso de ódio daqueles que se surpreendem com a humanidade alheia. É vítima da pregação dos que acreditam que suas opiniões pessoais são motivo para levar um murro destruidor no meio da cara, enquanto trabalha. É vítima de mais violência verbal praticada por quem acredita que, por algum motivo qualquer, a mulher merece a surra que leva. E se não fossem os motivos que elencaram, seriam outros, porque a outra violência – e não menos destruidora – é a culpabilização da vítima.

Basta você dedicar alguns minutos do seu dia para ligar um noticiário ou ler algum jornal, certamente vai encontrar alguma reportagem sobre violência contra a mulher. Um homem espancou sua esposa, ou o ex-namorado faz refém uma adolescente, ou um jovem violenta sexualmente uma mulher na saída do trabalho. Parem alguns minutos e ouçam as notícias. Mas ouçam com atenção. Há sempre, sempre, eu disse sempre, uma justificativa para o ato. O homem espancou a mulher porque ela foi culpada da blitz que ele caiu. O ex-namorado fez refém a adolescente de 16 anos porque ela estava se relacionando com outro homem. O cara estupra a jovem na saída do trabalho porque fazia 40º na rua e ela estava de shorts curto.

O que elas estavam pensando afinal? Como ousam serem humanas essas mulheres?

A quarta violência é a violência de ser professor no Brasil. O salário injusto, a jornada de trabalho desumana para alcançar uma vida minimamente digna. As péssimas condições estruturais das escolas. A desvalorização, em todos os níveis, da profissão de professor. O poder público não valoriza o professor. A sociedade não valoriza o professor e mais uma vez, leia-se por sociedade: nós. Tudo que não é valorizado pode ser descartado, sucateado, esquecido, mal tratado, espancado e desamparado. E não importa, porque nesse mundo de quem tem mais é mais, quem é um professor de ensino básico? Nada. A não ser alguém que auxilia diretamente na construção integral do ser humano e, portanto, na constituição de uma sociedade que vai, ou não, reproduzir os mesmos discursos vazios de sempre.

Vítima é Márcia de Lourdes e José. Nós, somos a sociedade e como sociedade, caso não estejamos pensando nas nossas concepções e na forma com que escolhemos olhar o mundo e agir sobre ele, somos – pasmem – culpados.

Já pensou no que você tem feito para mudar a realidade de pessoas genuinamente humanas? 

Que discursos você tem produzido?

Essa não é só uma história sobre o adolescente agressor e a professora espancada.

Essa é uma história sobre nós.

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