Narrativas feministas, um dos muitos fios condutores da mostra “O Mundo como Armazém”

No conjunto da produção de 439 artistas e 921 trabalhos é possível estabelecer diferentes olhares, distintas leituras desdobradas sob o manto da política, do feminismo, das linguagens e movimentos artísticos, do meio ambiente, dos polos geográficos costurados pelas representações: Santa Catarina, o Brasil, o regional e o global. Até 9 de junho, em dois novos espaços do Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis (SC), ocorre a exposição e feira de arte “O Mundo como Armazém”. Entre selecionados, convidados e obras do acervo, sobressaem questões e relações entre publicação de artista, o múltiplo, o arquivo e a coleção.

Constituído como um espaço físico movente que regula o fluxo de mercadorias, no caso obras artísticas, entre a oferta do fabricante (artista), comerciante (espaço expositivo) e o consumidor (público/espectador/perceptor), o projeto Armazém agrupa artistas/coletivos/editoras independentes, público e trabalhos múltiplos, ou seja, aqueles produzidos em número ilimitado, mediante diferentes processos industriais ou não como publicações de artista, livros de artista, cadernos de artista, cadernos de desenho, diários de artista, diários de bordo, postais, panfletos, cartazes, gravuras, fanzines, lambe-lambes, stickers, cartões, carimbos, objetos, etc. As tiragens são diferenciadas entre pequenas e grandes edições.

Nessa imensidão de possibilidades, a exposição pede tempo para viver as surpresas nelas contidas a partir do acervo, constituído de nomes nacionais e internacionais, além de artistas convidados e selecionados para essa décima sexta edição que resulta num panorama abrangente. A montagem refuta hierarquias consonantes com normas do mercado ou outros critérios de valorização do sistema de arte. Consagrado ou iniciante, novo ou velho, de lá ou de cá, não importa. Armazém se pauta pela horizontalidade e cabe ao público instaurar as próprias epifanias. Para isso, não dá o suporte da identificação dos trabalhos.

Ampla, a mostra reúne obras de Arnaldo Antunes, Fernanda Magalhães, Helio Oiticica (1937-1980), Leonilson (1957-1993), Tunga (1952-2016), Waltercio Caldas, John Cage (1912-1992), Joseph Beuys (1921-1986), Marcel Broodthaers (1924-1976), William Kentridge, Yoko Ono, entre outros pesos pesados. No âmbito de Santa Catarina, as representações se alargam a partir da Capital, abarcam nomes como Dirce Körbes, Fabiana Wielewicki, Franzoi, Ilca Barcellos, Itamara Ribeiro, Iam Campigotto, Júlia Amaral, Martha Ozzol, Paulo Gaiad (1953-2016), Priscila dos Anjos, Silvana Macêdo, Rubens Oestroem, Sara Ramos, Sérgio Adriano H. e muitos outros.

Trabalho “Inocência de Iracema”, de Priscila dos Anjos, que tem o próprio corpo como suporte/Foto divulgação

Entre tantas densidades, cabe aqui destacar as narrativas com teor feminista, poéticas que transitam entre as questões de gênero. No seu papel de problematizar a realidade, muitos artistas se situam no artivismo, prática e conceito ainda instáveis que apontam para ações políticas concebidas com estratagemas artísticos, estéticos e culturais. Nessa perspectiva alguns discursos são explícitos, colocam o dedo na ferida; outros tangenciam a abordagem pelo gesto, na fatura do bordado, por exemplo. No desenho ou na cerâmica, o corpo feminino pode aparecer em sua representação integral ou parcial: vulva, seio, boca, mão, perna, pé.

Antes de tudo, não se pode deixar de mencionar um trabalho histórico, inserido num território referencial da luta feminista. “Guerrillas Girls” é um emblema, um divisor de águas. Coletivo de artistas surgido em 1985, em Nova York, espalhou-se pelo mundo. Desdobrado, o grupo até hoje faz aparições públicas para combater o sexismo e o racismo. Para denunciar as disparidades de gênero no contexto artístico, as gorilas se despersonalizam, usam máscaras King Kong, tática inovadora na sua origem que busca nas intervenções colocar o foco nos problemas e não nas identidades. Essas “guerrilheiras” urbanas distribuem cartazes, livros e montam estratégias publicitárias para se opor ao modelo patriarcal que excluiu a produção artística feminina em museus e galerias. “Dispam-se”, cartaz criado em 1989, segue ganhando reproduções em diferentes países, um deles, publicado no Brasil, está no acervo do Armazém.

“Desaparecida”, de Bruna Mansani/NProduções/foto

A performance idealizada por Le Bafão apresentada no espaço expositivo no dia 4 de maio, questiona o papel da arte contemporânea num contexto “em que já não existe o pedestal que a separa do mundo”, explica a artista. O corpo nu feminino transformado em aderência plena da frase “don’t touch it’s art”. Por meio de um carimbo, o corpo transmutado em objeto artístico. Pés, mãos, virilha, braços, barriga, púbis, rosto, costas, ventre…tudo é violado diante de um público extremamente silencioso.

Resistência e a questão identitária também aparecem no trabalho “Inocência de Iracema”, de Priscila dos Anjos. Com outras noções operatórias, a artista de Joinville discute passado e originalidade tendo o corpo como objeto, se põe na cena, se faz fotografar, confunde o espectador, seria ela ou Iracema? Assume a atitude duchampiana na célebre “Nu Descendo as Escadas”, tela cubista do artista francês criada em 1912, desce nua, ela mesma a escada. Onze imagens de pequeno formato que, repetidas degrau a degrau, dão movimento à ação. No suporte imã, é arte que pode ficar até na porta da geladeira.

Fabiana Mateus expõe “Mulheres que Não São Santas”, na qual sobressai uma lista de nomes femininos bordada sobre tecido; Fernanda Magalhães, artista do Paraná, conhecida por seu artivismo em defesa do diferente a partir da representação da mulher gorda nua, participa com a obra “Grassa Nua”, em que retoma o jogo infantil de vestir e desvestir imagens de papel. Pamela Araújo desenha e escreve “Este Cansaço que É Imenso”, Sofia Brightwell adota a técnica aquarela e nanquim e mostra “Melado/Olho”, “Melado/Boca” e “Melado/Peito”, Itamara Ribeiro se apropria de páginas de revistas da avó, sobre as quais borda errado, bem ao contrário daquilo que lhe foi ensinado. Rita da Rosa não quer “Nenhuma Flor a Menos”.

Da série Camouflage, de Fran Favero/Foto divulgação

Com faturas distintas, seja por meio da representação ou da apropriação, o certo é que boa parcela dessas artistas adota o corpo como pulsão de autoconsciência do sujeito. Juntas, ao se posicionarem contra valores historicamente engendrados, apontam as contradições, a desigualdade, a injustiça, a violência, a discriminação e, assim, estabelecem uma outra história das emoções e dos sentimentos.

As inquietações feministas saem das paredes e aparecem também com vigor nas publicações ou livros de artista, deleite e descobertas em larga amplitude. Vejamos brevemente alguns exemplos: “Heroínas”, de Claude Cahun, “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes, “Biblioteca para Corpo em Expansão”, de Luana Navarro, “Textículos Femininos”, de Silvia Teske, “Mulher Hoje”, de Pati Peccin.

Embora não alicerçada só no recorte feminista, a exposição “O Mundo como Armazém” é significativa se pensada sob o ponto de vista das narrativas e vozes de mulheres que fazem arte como forma de resistência. Na discussão sobre a história e a natureza dessa produção cabe lembrar que a coordenação do projeto Armazém também se consolida a partir do trabalho e sensibilidade de Duda Desrosiers, Fran Favero, Francine Goudel, Joana Amarante e Juliana Crispe. Como coletivo ou como indivíduos, com aguda consciência, elas se situam como produtoras de novas linguagens e discursos sociopolíticos, sexuais e de gênero, ou seja, estão comprometidas com a necessidade de dinamitar o sistema de valores patriarcais.

Feira e seminário
O 16º Armazém prevê um seminário sobre o tema múltiplo e publicação de artista, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Nos dias 8 e 9 de junho, a iniciativa finalizará com o seminário e uma grande feira/encontro entre artistas/coletivos/editoras e público. A exposição, o seminário e a feira, além de outras iniciativas que ocorrerão até o fim do ano, estão legitimadas pelo Prêmio Edital Elisabete Anderle 2017. A mostra “O Mundo como Armazém” integra o projeto expositivo de extensão do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc) nos 70 anos da instituição que também incluem “Desterro Desaterro – Arte Contemporânea em Santa Catarina”, uma coletiva com artistas de diferentes gerações e “O Tempo dos Sonhos: Arte Aborígene Contemporânea da Austrália”, que traz ao Brasil a vigorosa tradição artística daquele país.

Sobre o Armazém
Criado em 2011, o projeto Armazém apresenta, através de exposições e feiras de arte, obras que sejam múltiplos como publicações de artista, livros de artista, cadernos de artista, cadernos de desenho, diários de artista, diários de bordo, postais, panfletos, cartazes, gravuras, fanzines, lambe-lambes, stickers, cartões, carimbos, objetos, etc; ou seja, trabalhos que tenham tiragens. Três fatores dão título ao projeto: a primeira edição aconteceu em Florianópolis (SC), no Museu Victor Meirelles, instalado na casa natal de Victor Meirelles na qual funcionou um bar e armazém durante parte da primeira metade do século 20. Além das relações com o espaço físico da instituição, a edição inaugural referencia o grupo Fluxus e o texto de Arthur C. Danto, “O Mundo como Armazém: Fluxus e Filosofia”, no livro “O que é Fluxus? O que Não É! O Porquê”, publicado em 2002 pelo Centro Cultural do Banco do Brasil/The Gilbert an Lila Silverman Collection Foundation.

Outro fator inspirador é a imagem utilizada nos cartazes das edições, uma fotografia de acervo familiar da idealizadora do projeto, Juliana Crispe. Um retrato do seu bisavô, Osvaldo Manoel Valgas, conhecido como seu Vadico, que entre as décadas de 1930 e 1990 foi sócio/funcionário de um armazém, no bairro Prainha, próximo ao centro da cidade de Florianópolis.

Desde 2011, o Armazém contabiliza a participação de mais de 300 artistas/coletivos brasileiros e alguns estrangeiros. Ao longo desses anos, formou um acervo de trabalhos com mais de mil obras em sua coleção.

Armazém é um espaço propositor de relações com a arte. Nas últimas edições, um ou mais curadores são convidados a participar da seleção de artistas e obras. A ideia é compartilhar olhares diferenciados e aproximar artistas locais por onde o projeto transita com os já participantes.

Armazém propõe um jogo relacional, propicia experimentar o contato direto com os trabalhos, tocando, lendo, trocando impressões e sensações. A coleção e as mostras se dão num conjunto heterogêneo e desprendido de hierarquias, valoriza o múltiplo e o coletivo como força pulsante e necessária para as artes.

Realização
Projeto Armazém, Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Udesc

Produção
Lugar Específico

Apoio
Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura 2017, Funcultural, Fundação Catarinense de Cultura e Governo do Estado de Santa Catarina

Apoio Cultural
Departamento de Artes Visuais Ceart/Udesc, Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza, Farmácia Ponta do Goulart e Multicor Fine Art 

Serviço
O quê: 16º Armazém, projeto contemplado pelo Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura-2017 
Quando:  Até 9 de junho de 2018, 13h às 21h
Onde: Museu de Arte de Santa Catarina – anexo Sala Lindolf Bell, Centro Integrado de Cultura, av. Gov. Irineu Bornhausen, 5.600, Agronômica, Florianópolis (SC),
telefone: 3664-2555
Quanto: gratuito
Feira e Seminário: 8 e 9 de junho de 2018, 9h às 21h.

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